Saí do Brasil no dia 07 de dezembro de 2019, próximo das
festas de final de ano que tem um significado especial para nós brasileiros,
tempo de se passar com a família e com os amigos. Abdiquei desse convívio não
só no final do ano, mas como algo necessário na esperança de uma vida melhor.
Faz quase um mês que minha vida mudou radicalmente. No
Brasil eu era psicóloga, psicanalista e supervisora clínico-institucional em
serviços de saúde mental, formada em uma boa universidade pública, com mestrado
e participação em grupos de pesquisa. Aqui no Japão sou mão-de-obra não qualificada
em uma fábrica de doces. Quando estou trabalhando fico por muitas horas
executando um mesmo movimento, sou parte humana da produção em série e sei das
consequências desse trabalho, para o corpo e para o espírito.
Assim como eu, tenho encontrado muitas pessoas com
formação superior trabalhando em empregos desprezados pelos japoneses, pessoas
que chegaram ao Japão fugindo de uma situação polítoco-econômica que tende a
piorar.
Nos meus últimos dias de Brasil acompanhava as notícias
políticas apreensiva com o tom autoritário, tentando entender que consequências
poderia haver na diplomacia externa. “Conseguirei escapar a tempo?” foi meu
pensamento em alguns momentos.
Não é minha primeira experiência no Japão, já estive no
país por duas vezes, em 2004 para fazer um arubaito (trabalho temporário) de 3
meses em um fábrica de celulares, momento em que ainda estava na faculdade de
psicologia, e, posteriormente em 2007 para fazer um arubaito de 6 meses em
outra fábrica de celulares, quando era recém-formada, mas já tinha passado pela
minha primeira experiência de emprego no Brasil, experiência de 9 meses na
Fundação Casa, que nos últimos dias de trabalho me faziam chorar antes do dia
começar diante dos absurdos vividos cotidianamente por um salário de R$1200,00
na época.
Desses dois momentos de experiência no Japão (meados dos
anos 2000 e agora em 2020), que contam mais de uma década, para a experiência
atual percebo algumas diferenças:
- a exploração dos descendentes de japoneses que querem
viver no Japão aumentou: nas duas primeiras experiências o arubaito tinha menos
gastos, uma vez que com o trabalho temporário se consegue guardar menos
dinheiro, dessa forma, as condições eram melhores com relação aos preços de
aluguel e forma de pagamento da passagem aérea. Nesses dois momentos não paguei
taxa de colocação nas empresas japonesas, valor que se cobrava dos dekasseguis e
que custava em torno de 1000 dólares. Hoje essa taxa existe para todos, mesmo
arubaitos e se propõem um valor fixo de aluguel mais gastos de água e energia
de cerca de 300 dólares por pessoa. Na região em que estou a empreiteira aluga
um apartamento de 3 quartos para 6 pessoas e cobra 30.000 iens por pessoa, ou
seja 180.000 iens por apartamento, sendo que muitos deles tem o aluguel por
volta de 70.000 iens.
- para que mesmo diante dos elevados custos ainda se tenha
pessoas que queiram vir ao Japão por poucos meses o discurso mudou
radicalmente: há dez anos atrás todos sabiam que trabalhar no Japão era se
submeter à jornadas extenuantes de trabalho, sabiam que o dia-a-dia do
trabalhador fabril era muito difícil, mas financeiramente compensava quando se
pensava no Brasil de altos e baixos econômicos, era a venda da força de
trabalho por um valor que se considerava vantajoso diante de um país de
terceiro mundo. Hoje o discurso não é mais da venda da força de trabalho e
retorno financeiro (já que o dinheiro ficou com o intermediador), o discurso é
o de novas experiências de vida, estar longe dos pais e viver com seu esforço,
mesmo que no final das contas não sobre dinheiro algum. Aqui precisamos ter em
mente que o arubaito é principalmente destinado aos estudantes universitários
em período de férias e que a grande parte deles (ou totalidade) é sustentada
pelos pais ou outro familiar e fazem parte da classe média no Brasil. Este
ponto mostra um mudança bastante grande em um período pequeno, hoje não nos
reconhecemos como trabalhadores, aqueles que vendem sua força de trabalho em
troca do dinheiro, ao invés disso, trabalhamos cerca de 10 a 12 horas por dia,
de forma bastante insalubre, para ter uma experiência de vida! Passamos pela
hipsterização do discurso do mundo do trabalho, parecida com os slogans de “aproveite
a experiência” na hora de comer em determinado restaurante ou de cortar os
cabelos em determinado salão badalado da rua augusta, mas que aqui camuflam mais uma forma de exploração do trabalhador.
Sabemos que a exploração do trabalhador tem se
radicalizado no mundo todo: mais trabalho, muito menos direitos trabalhistas,
precarização ao mesmo tempo em que o discurso oficial é do empreendedorismo.
Como exemplo a uberização ou os trabalhadores de entrega por aplicativa dão o
tom dos tempos em que vivemos.
Mesmo assim, as empresas especializadas em enviar
arubaitos do Brasil para o Japão aumentam o número de pessoas que aderem à
proposta a cada ano. Por que isto aconteceria se as condições são cada vez
piores?
Acrescentando um pouco de psicanálise ao texto, nossa
resposta pode estar ligada à subjetividade que temos produzido, o narcisismo.
Alguns autores defendem que o momento histórico que vivemos produz um tipo
peculiar de subjetivação e com ela, algumas dificuldades próprias. Entre outras
coisas é por conta dessa forma específica de subjetivação que temos visto cada
vez mais adolescentes em sofrimento psíquico que se aliviam com os cortes no
corpo[1],
na tentativa de dar unidade à imagem constituída de forma “precária”. Diante do
discurso de “experiência de vida” no Japão, algo de especial se apresenta ao
sujeito que pode ser tomado como saída para impasses.
Na década de 1990 muitos descendentes de japoneses vieram
ao Japão para trabalhar nas fábricas, naquele momento a remuneração era bem
mais elevada que os trabalhos no Brasil. Muitos trabalhadores não possuíam ensino
superior e um dos sonhos era poder proporcionar estudos aos filhos para que não
precisassem se submeter ao trabalho precário na fábrica. Dessa forma, várias
pessoas estiveram no Japão trabalhando para enviar dinheiro ao Brasil para
bancar os estudos dos filhos. O trágico nessa história é que hoje o ensino
superior não garante muita coisa no Brasil, muitas pessoas desempregadas têm
ensino superior e 25% dos doutores e 35% dos mestres não tem emprego formal.
Talvez os arubaitos que estão no Japão neste momento ainda
não saibam disso ou recusem essa realidade, mas pode ser que essa “experiência
de vida” de agora seja como uma preparação para o que está por vir no mundo
distópico que vivemos, caso não consigamos mudar o rumo das coisas.
Pra terminar esse texto que já se estende, a palavra
arubaito vem do alemão arbeit, que significa trabalho, isso sempre me remete ao
“Arbeit macht frei”, frase escrita na entrada do campo de concentração de
Auchwitz que significa “o trabalho liberta”. Por pior que seja o trabalho na
fábrica, não estou aqui tentando comparar ao campo de concentração, mas trazer
o conteúdo ideológico que envolve o trabalho. Em Auchwitz o trabalho forçado
(até a morte) era o que podia libertar os judeus, bodes expiatórios de uma
situação econômica decadente.
Qual a mensagem que temos quando jovens em trabalho
temporário e precário se deslocam de seu país de origem para trabalhar de forma
extenuante e voltam sem dinheiro, mas com “experiência de vida”? O que esse
tipo de discurso sobre o trabalho nos diz? Não falamos mais de um trabalho que
liberta, ou de um trabalho que dignifica, mas de uma experiência individual enriquecedora
que só pode pertencer ao indivíduo, algo para agregar ao curriculum, a
experiência que pode te levar a ter algo diferencial na hora de exercer seu
futuro trabalho. Mais um elemento do discurso hegemônico neoliberal que
centraliza o indivíduo como se fosse uma empresa, cada um é “você s/a” (você
sociedade anônima). Mas o problema aqui é que tudo é vivido de forma
individual, inclusive o fracasso. Desconsideramos toda a conjuntura
político-econômica e somos atravessados pelo fracasso vivido como algo pessoal.
As consequências psíquicas disso são bastante intensas, mas essa discussão
ficará para outra hora.
[1]
Me refiro aqui à dificuldade de constituição de um mínimo eu na dinâmica psíquica,
o que Abílio da Costa-Rosa nomeou como narcisos hipermodernos .
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